Week-end é o Salò de
Jean-Luc Godard. É um filme apocalíptico, que retoma o mundo virado ao avesso
de Made in USA (um dos inter-títulos,
neste filme utilizados ao extremo, refere-se às personagens como pertencendo a
um livro de Lewis Carroll), e que segue a viagem de um casal aos próprios abismos
da humanidade. Se La Chinoise era um
filme que assumia o radicalismo político de Godard do princípio ao fim, Week-end é mais do que isso: é uma
condenação sua à burguesia fascista de todo o mundo. Roland e Corinne (o casal
protagonista) embarcam numa viagem de carro para tentarem ficar com a herança
do pai dela, que têm andado a envenenar em pequenas doses há mais de cinco anos
e que está agora a morrer. O dinheiro, neste filme, compra tudo: no princípio, um
miúdo vestido de índio prega-lhes partidas e Roland passa-lhe umas notas para o
afastar. A viagem começa, mas cedo se revela um pesadelo em episódios: primeiro,
assistimos a um tiroteio entre Roland e Corinne e uns vizinhos por causa de um
risco que os primeiros fizeram ao carro dos segundos; segue-se a famosa cena do
desastre de automóvel que é filmada num plano-sequência em travelling de cerca
de oito minutos (em que a câmara vai acompanhando a fila de trânsito provocada
pelo acidente, na qual os condutores vão praticando as actividades mais incríveis,
completamente indiferentes à morte de uma família no acidente: de jogos de
xadrez a volleyball, de transporte de lamas e macacos a piqueniques e a
discussões violentas por um lugar na fila); depois o encontro com Joseph
Balsamo (filho de Deus e de Alexandre Dumas!), figura divina que recusa
milagres ao casal por estes só pedirem coisas materiais e supérfluas (um
Mercedes desportivo, um fim-de-semana com James Bond, um vestido Yves Saint
Laurent) e que lhes explica que o Cristianismo é a recusa do auto-conhecimento;
de seguida o encontro com Emily Brontë, que é imolada pelo casal, numa recusa burguesa
de todo o conhecimento filosófico e científico da humanidade; depois uma cena
em que Roland deixa Corinne ser violada por um transeunte sem levantar um dedo
para a ajudar; entre muitos outros surreais acontecimentos. Por fim, Roland e
Corinne chegam a casa da mãe desta e descobrem que ela se recusa a dividir a
herança do pai, que entretanto já morrera. Os dois assassinam a mãe e põe-se em
fuga, mas são raptados por um grupo terrorista de hippies maoístas que se
revelam canibais. A última sequência do filme (que dura aproximadamente vinte
minutos) acompanha os discursos ideológicos de várias das personagens
guerrilheiras, enquanto preparam alguns dos seus burgueses raptados para serem
comidos. Mao Tse-tung disse que era impossível fazerem-se omeletes sem ovos:
pois o que os hippies mais fazem é partir ovos. Godard, num constante jogo de
ironia, representa na sua mise-en-scène a constante tradução visual de
frases e discursos ideológicos de Esquerda. As acções daquele grupo de
fanáticos consiste na implementação literal da teoria política de Marx, Lenine,
Castro e Mao. Eles representam a vingança apocalíptica sobre os pecados da
burguesia. Corinne junta-se aos hippies e come Roland. Perto do fim, a câmara,
sempre independente da acção, ergue-se num movimento de grua que filma a água
de um lago. É a tranquilidade da natureza que Godard filma: esse plano é em
tudo semelhante aos últimos planos de Pierrot
le Fou e Le Mépris. Para além das
desgraças do homem, a força incomensurável da natureza e do mar. Mas em Week-end esse plano está montado aos
noventa e quatro minutos de filme: seguem-se ainda mais seis minutos que
testemunham um combate entre os hippies e forças de oposição e o plano final,
aterrador, de Corinne a devorar o seu marido. Que significa isto, senão que Week-end pretende testemunhar a
monstruosidade do ser humano? Em Pierrot e
Le Mépris, Godard acreditava ainda
numa certa tranquilidade da natureza, independente dos problemas do homem; em Week-end essa natureza já não serve de
nada, pois o homem e os seus crimes duram para além dela. Godard, cineasta
durante oito anos púdico (nos seus filmes nunca filmara o sexo senão
conceptualmente – como em Une Femme
Mariée - nem o corpo nu - aliás, famosa é uma das cenas iniciais de Le Mépris precisamente por Godard filmar
todas as partes do corpo de Brigitte Bardot sem nunca a mostrar verdadeiramente
nua), transforma-se em Week-end num
cineasta perverso: não só mostra o corpo nu por diversas vezes, sempre
representado como objecto de comércio, como começa o seu filme com um
plano-sequência de cerca de nove minutos em que Corinne descreve ao seu amante
uma ménage à trois em que participou:
essa experiência é descrita não com a infantilidade quase pueril de Masculin Féminin ou com o sentido de
libertação que o sexo adquire em Une
Femme Mariée e nem sequer com a já
cruel significação que Vivre Sa Vie ou
2 ou 3 Choses lhe conferem, a da
prostituição; em Week-end o sexo é
descrito como a mais horrenda das experiências: Corinne ao falar da sua ménage parece estar a descrever os
horrores de Auschwitz ou Dachau. A utilização de Godard do plano-sequência e da
profundidade de campo (experimentada em Le
Mépris, e aperfeiçoada nos três filmes que precederam Week-end) adquire aqui
(como tudo) um valor radical: não só se afirma como uma provocação constante ao
espectador (a experiência de ver o filme é, de certa maneira, tão horrível como
os horrores nele representados) como uma utilização exímia do pleonasmo, ou
seja, da repetição em loop dos mesmos
motivos (como um objecto de propaganda), mas também consagram a aproximação de
Godard a um certo cinema do tempo: em Week-end
é a duração dos planos que lhe confere o sentido (como nos seus últimos três
filmes, precisamente por cada vez mais recusarem a montagem). A câmara de
Godard adquire uma omnisciência inimaginável: numa constante dialéctica, muitas
vezes no mesmo plano, entre a imagem fixa e a imagem em movimento (seja em
travelling, panorâmica ou movimento de grua) ela vai-nos mostrando o que as
personagens não vêem, vai comentando ironicamente a acção, e descrevendo o
espaço independentemente do que nele acontece. Esta narração independente da
causalidade psicológica (conceito irrisório em Week-end) assume-se como fio condutor do filme e faz sentir ao
espectador que ele está a ser manipulado num jogo vertiginoso de alguém que já
sabe como o filme vai terminar (o que não acontecia em 2 ou 3 Choses pela natureza auto-reflexiva desse filme). Em Week-end, o jogo de reflexão não sofre a
função de interrogação de 2 ou 3 Choses:
é Brecht, como em La Chinoise¸ que
está em cada plano do filme. Godard não deixa nem por momentos que o espectador
se distraia de que está a ver um filme, de que não está a assistir à realidade:
os inter-títulos (“Este é um filme perdido no Cosmos“), os diálogos (“Este
filme é uma chatice, só encontramos pessoas doidas“), os olhares para a câmara,
os planos-sequência intermináveis, as personagens anacrónicas (Emily Brontë,
por exemplo), tudo converge nesse sentido. A quase recusa da montagem leva a
todo o já referido trabalho complexo de câmara e imagem (o director de
fotografia é Raoul Coutard, habitué de
Godard desde À Bout de Souffle), mas
também a um design de som fabuloso, que se prende com toda a ideia de pleonasmo
de Week-end (as infinitas buzinadelas
na cena do desastre de automóvel, por exemplo) e com uma utilização do off que cria no filme vários registos
simultâneos de sentido; mas é também uma utilização do simbolismo da cor sem
precedentes (o sangue de Week-end não
é sangue, é vermelho – e adquire portanto toda uma outra significação: vermelho
da bandeira dos EUA, por exemplo). Em Week-end,
apesar da sua aparente estrutura narrativa, os episódios sucedem-se não graças a uma lógica
de causalidade psicológica, mas graças a uma lógica de pensamento abstracto que
dita a ordem e a duração dos eventos descritos: os princípios do ensaio estão
aqui todos, da cena em que Corinne descreve a sua ménage (que importa isso para a narrativa?) à cena em que uma das
hippies morre cantando para a câmara (nunca chegamos sequer a saber quem é essa
personagem). O estilo cinèma verité é
aqui completamente posto de parte: tudo é artificial, nada tem a impressão de ser
casual: mesmo quando as personagens se dirigem para a câmara e falam para o
espectador, não é numa lógica de reflexão sobre si mesmas, mas de interpelação
constante e de criação de um efeito de distanciamento (a teatralização de todas
as cenas adquire um valor limite). As personagens tentam comunicar com o
espectador, uma vez que não conseguem comunicar entre si: é disso também que Godard
está a falar: Week-end é acerca da
incomunicabilidade entre as pessoas numa sociedade capitalista: Roland pedindo
informações a cadáveres ensanguentados na estrada, a personagem de Emily Brontë
que surge num dos momentos mais surreais do filme e que é imolada pelo casal,
proletários discutindo com burgueses ao longo da estrada, hippies guerrilheiros
que raptam capitalistas e que os devoram, tudo no filme confirma esta ideia. E
a pouca comunicação que existe é feita pela violência e pela morte: Roland quer
matar Corinne; Corine quer matar Roland; Roland e Corinne envenenam o pai desta
e depois assassinam a mãe quando ela se recusa a dividir a herança; no fim,
Roland é morto pelos hippies e comido por Corinne. Esta é supostamente
convertida para a causa hippie: mas que futuro há também para esses
guerrilheiros anti-burgueses, se eles próprios cometem os crimes mais atrozes?
A ambiguidade presente na obra de Godard atinge neste filme a sua expressão
mais radical: será que ele defende aqueles actos de canibalismo, aquela frase
que é dita por um dos hippies: “O horror da burguesia só pode ser vencido por
mais horror“? Não importa realmente: Week-end
é um filme de vingança, um filme de alguém que não esqueceu o fascismo e que
sabe que ele continua vivo na sua sociedade: tal como o Salò de Pasolini: um filme de monstros, para monstros, feito por um
monstro (porque a conclusão deste filme-ensaio é essa: de que a humanidade é,
toda ela, monstruosa). Week-end não
menciona a bomba atómica; bem que o podia ter feito: é a auto-destruição da
humanidade que está em causa (o inter-título final habitual em vez de dizer
apenas “FIM“, diz “FIM do Cinema“), e Godard, inevitavelmente, coloca a si
mesmo e ao espectador essa consciência e essa responsabilidade. Como o momento
(belíssimo, aliás) em que um revolucionário africano fala sobre o crescente
imperialismo americano e os seus olhos e os dos seus camaradas, direccionados
para a câmara, fazem uma interpelação directa ao espectador. É como se eles
dissessem: “E vocês, que vão fazer em relação a isto?“ É por isso que Week-end,
tal como Salò, se tornou tão
controverso e acesamente discutido: é um filme incómodo: todas as verdades
sobre o homem estão nele contidas. “Um filme encontrado num caixote do lixo“,
comenta um dos inter-títulos no início. Está certo esse inter-título, porque é
a humanidade, em Week-end, o maior de
todos os caixotes do lixo. Existe apenas um momento de paz em todo o filme: a
cena em que o pianista a quem o casal dá boleia toca Mozart numa aldeia
francesa: não só esse momento é lindíssimo (a indiferença de Roland e Corinne,
os burgueses, é contraposta à sedução dos camponeses pela música) como
demonstra conceptualmente a ideologia de Brecht de arte para o povo (que tanto
influenciou Godard). Mas ao contrário de Mozart, Godard não nos quer dar
prazer: Week-end afirma-se ainda hoje
não só como um dos monumentais pesadelos da História do Cinema, mas também como
o derradeiro ensaio de Godard sobre a natureza monstruosa do homem.
quinta-feira, 20 de dezembro de 2012
sexta-feira, 2 de novembro de 2012
Seis Personagens à Procura de Moral (O Gebo e a Sombra de Oliveira)
Se o filme enquanto interrogação moral ao espectador (apresentando cada personagem como uma hipótese de caminho a tomar) é brilhante em todos os aspectos, sofre, apesar disso, de problemas formais de grande importância: se o texto é bom e a fotografia é das melhores que vimos em digital, a montagem é problemática em muitos aspectos (o que é de estranhar, tendo em conta que a montagem sempre foi zona de experimentação e perfeição para Oliveira – basta lembrar Doiro, Faina Fluvial, Famalicão, o Pintor e a Cidade, Amor de Perdição, Palavra e Utopia, etc..). Esses problemas verificam-se tanto na construção da tensão dramática, como no tratamento temporal das cenas e sobretudo com questões de ritmo. As elipses estão trabalhadas de forma apressada, gerando uma confusão temporal que não é pretendida e que nunca permite perceber em que tempo estamos ou não. Depois, o tratamento em tempo real que é utilizado em grandes segmentos do filme (através dos inúmeros planos-sequência ou, na sua ausência, dos raccords de olhar, posição ou movimento) torna as cenas excessivamente longas e diminui a importância do texto. A sensação que temos (que não se verifica usualmente nos filmes de Oliveira) é de que o ponto de vista é meramente funcional, quando costuma, pelo contrário, ser fundamental: nos seus filmes, raramente o que é dito corresponde ao que é visto pela câmara. Esse jogo de Oliveira (que alcança o expoente máximo em Amor de Perdição) perde-se aqui completamente e torna as personagens menos interessantes e o que elas dizem apenas didáctico. Se é um problema da montadora ou da planificação, é difícil saber: o montador só pode montar com o que o realizador lhe dá. Mas fica-nos a estranheza de uma tensão inexistente, de um tempo confuso e perturbador, de uma câmara tão pouco interessante que dá pena e de um ritmo pouco estimulante que não valoriza o filme, mas que lhe retira todo o impacto. Acabamos assim com um objecto que é dos mais interessantes que temos visto este ano (ano de tão maus filmes, diga-se de passagem) mas que graças a uma montagem deficiente perde muitas das suas qualidades.
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