quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Week-end

Week-end é o Salò de Jean-Luc Godard. É um filme apocalíptico, que retoma o mundo virado ao avesso de Made in USA (um dos inter-títulos, neste filme utilizados ao extremo, refere-se às personagens como pertencendo a um livro de Lewis Carroll), e que segue a viagem de um casal aos próprios abismos da humanidade. Se La Chinoise era um filme que assumia o radicalismo político de Godard do princípio ao fim, Week-end é mais do que isso: é uma condenação sua à burguesia fascista de todo o mundo. Roland e Corinne (o casal protagonista) embarcam numa viagem de carro para tentarem ficar com a herança do pai dela, que têm andado a envenenar em pequenas doses há mais de cinco anos e que está agora a morrer. O dinheiro, neste filme, compra tudo: no princípio, um miúdo vestido de índio prega-lhes partidas e Roland passa-lhe umas notas para o afastar. A viagem começa, mas cedo se revela um pesadelo em episódios: primeiro, assistimos a um tiroteio entre Roland e Corinne e uns vizinhos por causa de um risco que os primeiros fizeram ao carro dos segundos; segue-se a famosa cena do desastre de automóvel que é filmada num plano-sequência em travelling de cerca de oito minutos (em que a câmara vai acompanhando a fila de trânsito provocada pelo acidente, na qual os condutores vão praticando as actividades mais incríveis, completamente indiferentes à morte de uma família no acidente: de jogos de xadrez a volleyball, de transporte de lamas e macacos a piqueniques e a discussões violentas por um lugar na fila); depois o encontro com Joseph Balsamo (filho de Deus e de Alexandre Dumas!), figura divina que recusa milagres ao casal por estes só pedirem coisas materiais e supérfluas (um Mercedes desportivo, um fim-de-semana com James Bond, um vestido Yves Saint Laurent) e que lhes explica que o Cristianismo é a recusa do auto-conhecimento; de seguida o encontro com Emily Brontë, que é imolada pelo casal, numa recusa burguesa de todo o conhecimento filosófico e científico da humanidade; depois uma cena em que Roland deixa Corinne ser violada por um transeunte sem levantar um dedo para a ajudar; entre muitos outros surreais acontecimentos. Por fim, Roland e Corinne chegam a casa da mãe desta e descobrem que ela se recusa a dividir a herança do pai, que entretanto já morrera. Os dois assassinam a mãe e põe-se em fuga, mas são raptados por um grupo terrorista de hippies maoístas que se revelam canibais. A última sequência do filme (que dura aproximadamente vinte minutos) acompanha os discursos ideológicos de várias das personagens guerrilheiras, enquanto preparam alguns dos seus burgueses raptados para serem comidos. Mao Tse-tung disse que era impossível fazerem-se omeletes sem ovos: pois o que os hippies mais fazem é partir ovos. Godard, num constante jogo de ironia, representa na sua mise-en-scène a constante tradução visual de frases e discursos ideológicos de Esquerda. As acções daquele grupo de fanáticos consiste na implementação literal da teoria política de Marx, Lenine, Castro e Mao. Eles representam a vingança apocalíptica sobre os pecados da burguesia. Corinne junta-se aos hippies e come Roland. Perto do fim, a câmara, sempre independente da acção, ergue-se num movimento de grua que filma a água de um lago. É a tranquilidade da natureza que Godard filma: esse plano é em tudo semelhante aos últimos planos de Pierrot le Fou e Le Mépris. Para além das desgraças do homem, a força incomensurável da natureza e do mar. Mas em Week-end esse plano está montado aos noventa e quatro minutos de filme: seguem-se ainda mais seis minutos que testemunham um combate entre os hippies e forças de oposição e o plano final, aterrador, de Corinne a devorar o seu marido. Que significa isto, senão que Week-end pretende testemunhar a monstruosidade do ser humano? Em Pierrot e Le Mépris, Godard acreditava ainda numa certa tranquilidade da natureza, independente dos problemas do homem; em Week-end essa natureza já não serve de nada, pois o homem e os seus crimes duram para além dela. Godard, cineasta durante oito anos púdico (nos seus filmes nunca filmara o sexo senão conceptualmente – como em Une Femme Mariée - nem o corpo nu - aliás, famosa é uma das cenas iniciais de Le Mépris precisamente por Godard filmar todas as partes do corpo de Brigitte Bardot sem nunca a mostrar verdadeiramente nua), transforma-se em Week-end num cineasta perverso: não só mostra o corpo nu por diversas vezes, sempre representado como objecto de comércio, como começa o seu filme com um plano-sequência de cerca de nove minutos em que Corinne descreve ao seu amante uma ménage à trois em que participou: essa experiência é descrita não com a infantilidade quase pueril de Masculin Féminin ou com o sentido de libertação que o sexo adquire em Une Femme Mariée  e nem sequer com a já cruel significação que Vivre Sa Vie ou 2 ou 3 Choses lhe conferem, a da prostituição; em Week-end o sexo é descrito como a mais horrenda das experiências: Corinne ao falar da sua ménage parece estar a descrever os horrores de Auschwitz ou Dachau. A utilização de Godard do plano-sequência e da profundidade de campo (experimentada em Le Mépris, e aperfeiçoada nos três filmes que precederam Week-end) adquire aqui (como tudo) um valor radical: não só se afirma como uma provocação constante ao espectador (a experiência de ver o filme é, de certa maneira, tão horrível como os horrores nele representados) como uma utilização exímia do pleonasmo, ou seja, da repetição em loop dos mesmos motivos (como um objecto de propaganda), mas também consagram a aproximação de Godard a um certo cinema do tempo: em Week-end é a duração dos planos que lhe confere o sentido (como nos seus últimos três filmes, precisamente por cada vez mais recusarem a montagem). A câmara de Godard adquire uma omnisciência inimaginável: numa constante dialéctica, muitas vezes no mesmo plano, entre a imagem fixa e a imagem em movimento (seja em travelling, panorâmica ou movimento de grua) ela vai-nos mostrando o que as personagens não vêem, vai comentando ironicamente a acção, e descrevendo o espaço independentemente do que nele acontece. Esta narração independente da causalidade psicológica (conceito irrisório em Week-end) assume-se como fio condutor do filme e faz sentir ao espectador que ele está a ser manipulado num jogo vertiginoso de alguém que já sabe como o filme vai terminar (o que não acontecia em 2 ou 3 Choses pela natureza auto-reflexiva desse filme). Em Week-end, o jogo de reflexão não sofre a função de interrogação de 2 ou 3 Choses: é Brecht, como em La Chinoise¸ que está em cada plano do filme. Godard não deixa nem por momentos que o espectador se distraia de que está a ver um filme, de que não está a assistir à realidade: os inter-títulos (“Este é um filme perdido no Cosmos“), os diálogos (“Este filme é uma chatice, só encontramos pessoas doidas“), os olhares para a câmara, os planos-sequência intermináveis, as personagens anacrónicas (Emily Brontë, por exemplo), tudo converge nesse sentido. A quase recusa da montagem leva a todo o já referido trabalho complexo de câmara e imagem (o director de fotografia é Raoul Coutard, habitué de Godard desde À Bout de Souffle), mas também a um design de som fabuloso, que se prende com toda a ideia de pleonasmo de Week-end (as infinitas buzinadelas na cena do desastre de automóvel, por exemplo) e com uma utilização do off que cria no filme vários registos simultâneos de sentido; mas é também uma utilização do simbolismo da cor sem precedentes (o sangue de Week-end não é sangue, é vermelho – e adquire portanto toda uma outra significação: vermelho da bandeira dos EUA, por exemplo). Em Week-end, apesar da sua aparente estrutura narrativa, os  episódios sucedem-se não graças a uma lógica de causalidade psicológica, mas graças a uma lógica de pensamento abstracto que dita a ordem e a duração dos eventos descritos: os princípios do ensaio estão aqui todos, da cena em que Corinne descreve a sua ménage (que importa isso para a narrativa?) à cena em que uma das hippies morre cantando para a câmara (nunca chegamos sequer a saber quem é essa personagem). O estilo cinèma verité é aqui completamente posto de parte: tudo é artificial, nada tem a impressão de ser casual: mesmo quando as personagens se dirigem para a câmara e falam para o espectador, não é numa lógica de reflexão sobre si mesmas, mas de interpelação constante e de criação de um efeito de distanciamento (a teatralização de todas as cenas adquire um valor limite). As personagens tentam comunicar com o espectador, uma vez que não conseguem comunicar entre si: é disso também que Godard está a falar: Week-end é acerca da incomunicabilidade entre as pessoas numa sociedade capitalista: Roland pedindo informações a cadáveres ensanguentados na estrada, a personagem de Emily Brontë que surge num dos momentos mais surreais do filme e que é imolada pelo casal, proletários discutindo com burgueses ao longo da estrada, hippies guerrilheiros que raptam capitalistas e que os devoram, tudo no filme confirma esta ideia. E a pouca comunicação que existe é feita pela violência e pela morte: Roland quer matar Corinne; Corine quer matar Roland; Roland e Corinne envenenam o pai desta e depois assassinam a mãe quando ela se recusa a dividir a herança; no fim, Roland é morto pelos hippies e comido por Corinne. Esta é supostamente convertida para a causa hippie: mas que futuro há também para esses guerrilheiros anti-burgueses, se eles próprios cometem os crimes mais atrozes? A ambiguidade presente na obra de Godard atinge neste filme a sua expressão mais radical: será que ele defende aqueles actos de canibalismo, aquela frase que é dita por um dos hippies: “O horror da burguesia só pode ser vencido por mais horror“? Não importa realmente: Week-end é um filme de vingança, um filme de alguém que não esqueceu o fascismo e que sabe que ele continua vivo na sua sociedade: tal como o Salò de Pasolini: um filme de monstros, para monstros, feito por um monstro (porque a conclusão deste filme-ensaio é essa: de que a humanidade é, toda ela, monstruosa). Week-end não menciona a bomba atómica; bem que o podia ter feito: é a auto-destruição da humanidade que está em causa (o inter-título final habitual em vez de dizer apenas “FIM“, diz “FIM do Cinema“), e Godard, inevitavelmente, coloca a si mesmo e ao espectador essa consciência e essa responsabilidade. Como o momento (belíssimo, aliás) em que um revolucionário africano fala sobre o crescente imperialismo americano e os seus olhos e os dos seus camaradas, direccionados para a câmara, fazem uma interpelação directa ao espectador. É como se eles dissessem: “E vocês, que vão fazer em relação a isto?“ É por isso que Week-end, tal como Salò, se tornou tão controverso e acesamente discutido: é um filme incómodo: todas as verdades sobre o homem estão nele contidas. “Um filme encontrado num caixote do lixo“, comenta um dos inter-títulos no início. Está certo esse inter-título, porque é a humanidade, em Week-end, o maior de todos os caixotes do lixo. Existe apenas um momento de paz em todo o filme: a cena em que o pianista a quem o casal dá boleia toca Mozart numa aldeia francesa: não só esse momento é lindíssimo (a indiferença de Roland e Corinne, os burgueses, é contraposta à sedução dos camponeses pela música) como demonstra conceptualmente a ideologia de Brecht de arte para o povo (que tanto influenciou Godard). Mas ao contrário de Mozart, Godard não nos quer dar prazer: Week-end afirma-se ainda hoje não só como um dos monumentais pesadelos da História do Cinema, mas também como o derradeiro ensaio de Godard sobre a natureza monstruosa do homem.

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