sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Seis Personagens à Procura de Moral (O Gebo e a Sombra de Oliveira)


Uma família, uma casa, uma sala. Uma câmara que nunca se move e que raramente abandona o espaço. Uma profundidade de campo a que nada escapa e, quando escapa, nos devolve um contra-campo. A família: o pai (Michael Lonsdale, o Gebo do título, na melhor interpretação masculina dos últimos tempos, seja em que filme for), a mãe (Claudia Cardinale, velhíssima sombra de uma das mulheres mais belas do cinema), a nora (Leonor Silveira numa das suas raras interpretações aceitáveis – costuma ser péssima) e Ricardo Trêpa (atrasado mental que destrói parte fundamental do filme e que Oliveira insiste em usar como uma espécie de alter-ego sem se aperceber do quão prejudicial ele é para os seus filmes; é ele pois a sombra do filme, o filho – não pródigo, é certo – que regressa a casa após oito anos de ausência). Dois convidados chegam também: Jeanne Moreau (num estado físico semelhante ao de Cardinale) e Luís Miguel Cintra (razoável, embora caindo um pouco no cabotinismo). Moreau é uma velha tentada pelo dinheiro (o momento em que ela acaricia o baú de Gebo é genial) mas que vive na pobreza e que é forçada a resignar-se; Cintra é um actor, representando a figura do artista, que se queixa da falta de dinheiro para as suas peças mas que vive preso ao seu mundo de fantasia, à flauta que lhe falta mas que ele insiste em tocar. O pai, Gebo, é um velho que segue apenas uma doutrina: a do dever. O seu dever prende-se com a humildade, a pobreza, o cumprimento das normas, a aceitação da vida como ela lhe surge. O filho é o oposto do pai. Rouba, mata e ri-se disso com uma malícia que seria devastadora se fosse outro o actor. Ele é a figura Nietzschiana do filme: reconhece o vazio da existência, aceita o Nada como princípio, procura tudo sentir, independentemente das falhas morais que isso acarrete: aliás, melhor dizendo, esta personagem é anti-moral em todos os aspectos do termo. E é precisamente esse o grande tópico que estas seis figuras discutem, do princípio ao fim: o que é a moral? A nora e a mãe, embora duvidando da inflexibilidade dogmática de Gebo, tremem de pavor ante as atrocidades do filho e ficam presas num limbo do qual não há saída. O filme é por isso austero como poucos chegam a ser: propõe apenas dois caminhos: o dever espiritual associado à miséria material; e a negação da moral através do crime que conduz à riqueza pecaminosa. No fim, depois de a “Sombra” roubar o cofre de Gebo (ele é contabilista de uma empresa e guarda o dinheiro da mesma em casa) e fugir sabe-se lá para onde, o pobre velho entrega-se à polícia em lugar do filho. É nesse momento que as sombras invadem a casa pela única vez, casa essa escuríssima mas sempre iluminada (como um interior a óleo de Vermeer ou Rembrandt). Mas antes desse momento, o sentido de dever de Gebo fraqueja. Não percebemos se ele quer fugir ou se quer entregar, embora acabe por tomar a última decisão. O sacrifício em lugar do filho respeita todos os princípios morais de Gebo, mas surge então a pergunta fulcral: de que lhe serviram esses princípios, se é a cadeia que o espera, a ele, um inocente? Esta questão é como uma dúvida que Oliveira coloca a todos os espectadores que vejam o seu filme, e é uma pergunta que faz todo o sentido no funcionamento actual do mundo: o que queremos nós fazer? Ser-se Kantiano ao ponto de tudo acatar, de nada duvidar, de cumprir as leis e normais e princípios morais da sociedade? Ou renegar tudo isso, mandar tudo à merda e, crendo que tudo é nada e que nada importa, tudo fazer consoante o nosso desejo e vontade? Cada um de nós encontrará uma resposta: ou o dever, ou a revolta, sendo claro, no entanto, que ninguém sairá indiferente. 
Se o filme enquanto interrogação moral ao espectador (apresentando cada personagem como uma hipótese de caminho a tomar) é brilhante em todos os aspectos, sofre, apesar disso, de problemas formais de grande importância: se o texto é bom e a fotografia é das melhores que vimos em digital, a montagem é problemática em muitos aspectos (o que é de estranhar, tendo em conta que a montagem sempre foi zona de experimentação e perfeição para Oliveira – basta lembrar Doiro, Faina Fluvial, Famalicão, o Pintor e a Cidade, Amor de Perdição, Palavra e Utopia, etc..). Esses problemas verificam-se tanto na construção da tensão dramática, como no tratamento temporal das cenas e sobretudo com questões de ritmo. As elipses estão trabalhadas de forma apressada, gerando uma confusão temporal que não é pretendida e que nunca permite perceber em que tempo estamos ou não. Depois, o tratamento em tempo real que é utilizado em grandes segmentos do filme (através dos inúmeros planos-sequência ou, na sua ausência, dos raccords de olhar, posição ou movimento) torna as cenas excessivamente longas e diminui a importância do texto. A sensação que temos (que não se verifica usualmente nos filmes de Oliveira) é de que o ponto de vista é meramente funcional, quando costuma, pelo contrário, ser fundamental: nos seus filmes, raramente o que é dito corresponde ao que é visto pela câmara. Esse jogo de Oliveira (que alcança o expoente máximo em Amor de Perdição) perde-se aqui completamente e torna as personagens menos interessantes e o que elas dizem apenas didáctico. Se é um problema da montadora ou da planificação, é difícil saber: o montador só pode montar com o que o realizador lhe dá. Mas fica-nos a estranheza de uma tensão inexistente, de um tempo confuso e perturbador, de uma câmara tão pouco interessante que dá pena e de um ritmo pouco estimulante que não valoriza o filme, mas que lhe retira todo o impacto. Acabamos assim com um objecto que é dos mais interessantes que temos visto este ano (ano de tão maus filmes, diga-se de passagem) mas que graças a uma montagem deficiente perde muitas das suas qualidades. 

Sem comentários:

Enviar um comentário